A Preciosidade - Devaneios
- CADRINE
- 26 de dez. de 2018
- 8 min de leitura
Atualizado: 26 de jan. de 2019
O AMADURECIMENTO PRECOCE E AS RELAÇÕES SOCIAIS DA MULHER NA OBRA ‘’LAÇOS DE FAMÍLIA’’ RETRATADOS NO CONTO ‘’A PRECIOSIDADE’’ DE CLARICE LISPECTOR.
Traços socialmente definidos e biologicamente criados compõe a representação do feminino trazido por Clarice Lispector, olhar para as belezas externas e explorar o mistério que a contemplam e a todas as suas personagens. Mergulhar em si, em sensibilidade e delicadeza somente em ser feminina, sem deixar de chacoalhar tudo que vem de dentro das pessoas. Sua feminilidade não foi feita para mulheres ou só sobre elas, até mesmo os homens se veem atingidos com todas as suas palavras, não é somente uma questão de público, não há um público para Lispector quando se trata de humanizar. Na obra ‘’Laços de família’’ a autora neorrealista traz 14 contos, sendo 8 destes com enfoque nas personagens femininas. Em cada um deles há abordagens semelhantes e aos mesmo tempo divergentes quando se trata da figura da mulher na sociedade, mas especificamente um conto chamado ‘’A preciosidade’’ será analisado neste ensaio.

(Imagens retiradas do Google).
O conto ‘’A preciosidade’’ é definido quanto a sua estrutura como uma narrativa breve em forma de prosa e com parágrafos livres. Assim como todo conto trata-se de um fato incomum que permeia uma realidade simples e pacata, possui um narrador onisciente e períodos não muito longos.
Com relação ao aspecto gramatical os verbos estão dispostos preferencialmente no passado (contaminava, tomava, havia, existia, fazia, venerava...), apresentando também substantivos (manhã, joia, homens, ônibus, sapatos, madrugada...), adjetivos (desdobrado, vasto, magreza, rígida, dolorosa...), pronomes (quão, enquanto, ela, lhe, seu, que...), preposições (de, em, com, para, sob, na...), advérbios (depois, sempre, onde, entre, pouco, muito...), conjunções (se, então, e, cujo, como também, nem, como, enfim, por isso...), artigos (o, as, um, uma, os) e numerais (quatro, primeiro, dezesseis, segundo, sete).
Possuindo ainda figuras de pensamento como: Antítese ‘’ quatro mãos erradas de quem não tinha a vocação, quatro mãos que a tocaram tão inesperadamente que ela fez a coisa mais certa que poderia ter feito no mundo dos movimentos: ficou paralisada’’, anáfora ‘’... que não se espreguiçava, não se comprometia, não se contaminava’’; ‘’... desenhava estrelas, estrelas, estrelas, estrelas, tantas e tão altas’’, personificação ‘’o sol delineava cada homem com carvão preto.’’; ‘’a impaciência e o ódio ruíam seu coração’’, comparação ‘’comia como um centauro’’, ‘’como um avestruz lenta se abre, ela acordava.’’, neologismo ‘’algodoado’’.
No texto a autora abrange um fato que ocorre no cotidiano, porém este fato traz consigo uma análise humana como uma consequência do que aconteceu. O conto retrata um momento da vida de uma jovem com seus quinze anos que não muito cuidadosa com sua aparência preza por ser invisível para os homens, durante todos os dias ela até então almeja não ser notada ou chamar a atenção masculina, apesar de ser nova, a mesma já entende e sente-se ameaçada com a presença destes. No trecho seguinte a personagem opta por sentar-se ao lado de uma mulher no bonde porque instintivamente sente estar mais segura ao lado da senhora.
‘’ ...escolhia no bonde um banco se possível vazio ou, se tivesse sorte, sentava-se ao lado de alguma asseguradora mulher com uma trouxa de roupa no colo, por exemplo — e era a primeira trégua. ‘’
Nota-se que Clarice Lispector usa a palavra ‘’asseguradora’’ para caracterizar a mulher com a qual escolheu sentar-se perto, pois para ela estar com seus semelhantes, ou seja, outras mulheres lhe traziam conforto e segurança. A figura masculina como ameaça está presente em diversos contos da autora, por sua preferência ao feminismo esta trazia a realidade social da mulher em diversos âmbitos como poderemos observar mais adiante.
A principal ideia abordada no texto é referente ao amadurecimento precoce da personagem, que aos seus quinze anos foi assediada por dois homens durante sua ida para o colégio. No decorrer da história é perceptível a verossimilhança que várias mulheres reais têm com a personagem em questão, ao tratar e definir aquela moça Lispector estava definindo cada uma das mulheres que conhecemos. Quase como se ela tivesse retirado um pouco de cada mulher na Terra para formar sua personagem.
O próprio título da obra traz em si duas ideias, uma delas referente a própria personagem e outra a história. Ao falar em preciosidade a escritora refere-se a virgindade da moça, que tem isso como o seu bem precioso, como uma joia rara tornando-a única, em contrapartida fala também do quão a personagem é preciosa como podemos ver no dado momento em que ela fala:
‘’ mas por dentro da magreza, a vastidão quase majestosa em que se movia como dentro de uma meditação. E dentro da nebulosidade algo precioso. Que não se espreguiçava, não se comprometia, não se contaminava. Que era intenso como uma joia. Ela. ‘’
A protagonista é retratada como ‘’porca’’ ou até mesmo suja no início da obra, mas ao decorrer esta também se mostra única, inteligente e sábia, entretanto poucos são aqueles que conseguem enxergá-la como ela realmente é, alguém que não foi explorado ou descoberto, como uma joia rara que ainda não foi lapidada, segundo o seguinte trecho:
‘’... os cabelos caíam nos olhos, e onde ela era tratada como um rapaz. Onde era inteligente. A astuciosa profissão. Parecia ter estudado em casa. Sua curiosidade informava-lhe mais que respostas. ‘’
O contexto histórico durante a época abrangia uma análise do que era atrasado ou estava em progresso perante os anos de 1945 a 1964, tendo em vista que a publicação do livro ‘’Laços de Família’’ em que apresenta o conto ‘’A preciosidade’’ e tantos outros que foram publicados, trazendo à tona verdadeiros questionamentos sobre o papel da mulher na sociedade, se esta continuaria sem voz e sem vez, apenas como uma figura adjacente do homem. A abordagem de Clarice Lispector dialoga com a obra ‘’O segundo sexo’’ de Simone de Beauvoir, por se tratar de um tema parecido com o que é trabalhado pela feminista francesa. Perante isto a escritora tentou buscar e mostrar aos leitores um pouco de como era ser mulher e como até mesmo as jovens mulheres eram submetidas a fazer coisas sem sequer serem questionadas a respeito. Em particular ela traz questionamentos momentos antes da personagem se encontrar com os dois homens, refletindo sobre eles:
‘’ ...olhou ao redor como se pudesse ter errado de rua ou de cidade. Mas errara os minutos: saíra de casa antes que a estrela e dois homens tivessem tempo de sumir. Seu coração se espantou. O primeiro impulso, diante de seu erro, foi o de refazer para trás os passos dados e entrar em casa até que eles passassem: "eles vão olhar para mim, eu sei, não há mais ninguém para eles olharem e eles vão me olhar muito!" ‘’

(Imagens retira do Google).
O medo era evidente a cada fala da menina, percebe-se que ela teme a figura dos homens sem antes mesmo de tê-los olhado, pois bastava o fato de olhar para ela e então saber-se-ia que a desejariam e diante daquele desejo uma menina de seus quase dezesseis anos jamais seria páreo para dois homens. E mesmo que se fossem duas mulheres e dois homens, a presença masculina daquela sociedade irrefutavelmente ganharia das mulheres pelos preceitos adotados por um conjunto de pessoas.
Ao desenrolar da trama a escritora deixa evidente o uso de 3 performances que caracterizam o mistério do texto. A epifania que está diretamente ligada ao destino e a numerologia, nos trechos a seguir a autora impõe a personagem que ela não fuja de seu destino, que naquele dia, naquela manhã em que ela acordou minutos mais cedo e saiu de casa com seus sapatos barulhentos era para ser assim, era para que quatro mãos a tocassem e esse toque mudasse a sua percepção do mundo, é isto que a epifania traz, que após um fato marcante haja um pensamento iluminado que mude traços característicos dos personagens:
‘’ Eles, cujo papel predeterminado era apenas o de passar junto do escuro de seu medo, e então o primeiro dos sete mistérios cairia; eles que representariam apenas o horizonte de um só passo aproximado, eles não compreenderam a função que tinham e, com a individualidade dos que têm medo, haviam atacado. Foi menos de uma fração de segundo na rua tranquila. Numa fração de segundo a tocaram como se a eles coubessem todos os sete mistérios. Que ela conservou todos, e mais larva se tornou, e mais sete anos de atraso. ‘’
A presença forte do número sete é representada neste trecho, segundo a bíblia o número sete contempla alguns significados, entre eles o que Clarice Lispector trouxe à tona. Assim como a semana e o mundo foram feitos em dentro de sete dias, e ao sétimo dia eis o descanso, o recomeço de algo que ali será dado o fim. Essa ideia é associada ao recomeço da vida da jovem, que após ser violentada se vê obrigada a recomeçar, a deixar de lado seus hábitos antigos e passa a cultivar novas maneiras diante aquela sociedade que lhe foi obrigatoriamente imposta.
Depois do ocorrido quando voltou para casa um de suas primeiras ações foi pedir aos pais sapatos novos, pois para ela, seus sapatos chamavam muito atenção o que a impedia ser invisível aos olhos dos homens, e já que havia se tornado mulher, Lispector ressalta no final que uma mulher não pode chamar atenção na sociedade, e para isso a moça de seus quase dezesseis anos precisava de novos sapatos que a silenciassem, que sua presença como mulher não incomodasse aos homens
E na sua última fala, portanto ela pede sapatos novos e se vê transformada por aquelas quatro mãos medrosas e incertas que a tocaram:
‘’ — Preciso de sapatos novos! Os meus fazem muito barulho, uma mulher não pode andar com salto de madeira, chama muita atenção! Ninguém me dá nada! Ninguém me dá nada! — E estava tão frenética e estertorada que ninguém teve coragem de lhe dizer que não os ganharia. Só disseram:
— Você não é uma mulher e todo salto é de madeira. Até que, assim como uma pessoa engorda, ela deixou, sem saber por que processo, de ser preciosa. Há uma obscura lei que faz com que se proteja o ovo até que nasça o pinto, pássaro de fogo.
E ela ganhou os sapatos novos. ‘’
CONSIDERAÇÕES FINAIS:
A obra aqui retratada trouxe de diversas maneiras um olhar esquecido e manipulado pela sociedade atual, um olhar esse que dilacera e deixa para traz sem respostas o porquê de tantas sociedades massacrarem a figura da mulher. Algo que não é como, mas que sempre ouvimos um caso desses por onde andamos, um olhar que é perceptivelmente tão antigo que nem sabemos explicar porque os homens assustam tanto as mulheres. O medo, o toque sem permissão, e epifania gerada e o destino retirados do mistério e do ser de Clarice Lispector nos é mais comum do que pensamos.
Em ‘’A preciosidade’’ a autora tenta nos mostrar o medo que uma moça ainda jovem já tem dos homens, que esta prefere mil vezes ser invisível a eles do que qualquer outra coisa, que vive em um mundo somente seu recluso e cercado de mistério para que cada vez mais a sociedade machista e patriarcal não invada as suas vontades. Mas ao mesmo descrevendo essa personagem a autora se descrevia perante esta e todas as mulheres do mesmo livro, sempre havia algo de seu íntimo em suas obras, e era afim desta mensagem ela tentava passava ao leitor a importância de também se respeitar a mulher como se respeitam os homens, e através do ato violento de estuprar a mesma descreve a realidade de muitas mulheres apenas por serem mulheres sem o menor pudor ou explicação.
Com a análise e leitura profunda sensibilizei-me e compreendi cada vez mais o respeito ao próximo, independente de quem seja este próximo, de quantos anos tenha, e a que cultura ele pertence. A obra alertou mais ainda meus olhos para algo que tanto aquela como esta sociedade são carentes, mesmo relevando o contexto, a falta de sensibilidade, ainda está mais do que presente nas culturas que vivemos e pregamos.
Escrito por Carla Andrine, em 31 de maio de 2017.
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